Esse é o capítulo 1 do meu conto Apenas um
Ninguém está pronto para isso, ver o caso de algum parente seu ser arquivado, principalmente quando você sabe quem é o culpado. Não que essa pessoa seja minha parente, mas a essa altura a sensação é como se todas fossem. A injustiça se acumula como se todas fossem do meu sangue. Até porque eles nem sequer se escondem, andam por aí desfrutando da liberdade concedida pelo amor aos homens e ódio às mulheres. Eu só queria uma vitória, um caso resolvido, um cara preso e responsabilizado pelo que fez.
Faz sete anos que todos os meus casos são encerrados por falta de provas ou qualquer outra justificativa. Tudo o que temos é questionável, existem perguntas demais sem respostas e, cada vez que eu tento ir mais a fundo sinto meus ossos fisicamente se esfregando um no outro. É torturante, mas tenho certeza de que é uma sensação falsa, criada e imposta para nos controlar. Só que, como sempre, não consigo provar nada. Como a única investigadora nesta delegacia, isso é exaustivo.
Na minha cabeça, essas reuniões de sexta-feira são como se eu estivesse em um loop temporal dentro de um cinema, onde eu vejo o mesmo filme, com os mesmo atores que odeio e o mesmo desfecho. Sem poder falar para o diretor, muito menos dizer que ele deveria encontrar um final diferente, menos clichê. Semana passada foi um pai que abusou da própria filha, na anterior foi um tio que matou a sobrinha. E essa semana um marido matou a mulher porque descobriu que ela estava traindo. Me assombra pensar em como ele caçou o amante, espancou ele e mandou ele para a UTI, mas com a mulher ele foi até o fim. Sem nem titubear.
Sinto o cheiro do banheiro quando vejo as fotos e a dor dela ao ser violentada da forma que foi. Minha perna balança em um ritmo específico enquanto lembro do interrogatório no início da semana. As risadas e a atitude calma de alguém que não tem medo algum de ser pego porque sabe que não vai dar em nada. Porque os homens têm essa convicção de quem são imbatíveis? No final das contas o tal amante não prestou queixas, devia estar com o rabo preso em algum lugar, ou é a tal da benevolência masculina. Imagino com muita vivacidade minha unha passando pela pele, arrancando cada pedacinho com força e lentidão - assim como eles fazem comigo. Até porque só se combate selvageria com selvageria, não?
Sou obrigada a voltar para a realidade pelo barulho de algum telefone tocando e lembro porque não posso fazer nada disso: a responsabilidade social de proteger os cidadãos acima de tudo. Servir e proteger. Fazemos isso tão bem que ninguém percebe o quão deturpada é a realidade, a história que contam é enviesada, com certeza. Parece lavagem cerebral. Como que nenhum caso de feminicídio até hoje foi resolvido, mas a polícia serve e protege as mulheres?
Sinto um vazio preencher minha cabeça e não consigo ir além com meu pensamento anarquista. É a Trava. É ela que me faz perder a paciência em interrogatórios, na rua, com colegas…de modo geral com tudo e todos. Mas alguém pode me culpar? Quando escolhi essa carreira achei que fosse ser uma forma de trazer um pouco de justiça, acertar algumas contas e usar o meu treinamento pra fazer os homens pagarem pelo que fazem com as mulheres, vejo isso desde pequena nas ruas.
No entanto, aqui dentro parece um mundo paralelo. O número de mulheres atacadas sobe, assim como o de casos encerrados, mas o de presos continua o mesmo. Canso de ouvir dizer que eu sou a melhor investigadora por aqui, mas essa conta não fecha. Tenho a leve impressão de que sou a melhor exatamente por esse motivo. Meu ego agradece o reconhecimento, mas minha cabeça sabe que é falso. Não sei qual deles vai ganhar no final.
Quando bate meio dia no relógio a reunião acaba e é hora do almoço. Todos saem comentando como estão com fome e eu fico sentada com o estômago embrulhado ainda olhando as cenas.
— Tudo bem aí? — meu chefe pergunta ao passar por mim.
Hesito um momento antes de responder, mas decido que não dá mais pra ficar aqui.
— Não muito, tô passando um pouco mal do estômago hoje — Não é mentira — Acho que vou passar o restante do dia em casa — digo.
— Tudo bem, só não esquece de mandar o relatório do caso, precisamos arquivar ele.
Faço que sim com cabeça, levanto e saio catando minhas coisas para ir pra casa. Andando pela rua, uma música me vem e começo a cantarolar no automático. Reparo que é a mesma que estava balançando a perna durante a reunião. Lembro de quem é, faz sentido eu ter me refugiado nela mais cedo. Faz um tempo que eu não vejo notícia dela, muito silêncio e nada do álbum prometido. Uma relação de amor e ódio momentânea me domina e começo a fazer uma investigação prazerosa para distrair minha cabeça. Onde ela pode estar, o que pode estar fazendo e quando ela vai lançar essa merda?
Minhas habilidades de investigação se limitam muito quando uma pessoa realmente não quer ser encontrada e tem dinheiro para se esconder, então começo a me distrair com as hipóteses e teorias. O número de pedras no brinco dela é 12, o mesmo que em outra ocasião. A roupa é xadrex, assim como as do ano passado quando ela estava em tour. São esses detalhes que os fãs se dão o trabalho de buscar que fazem meu dia. Os casos me saturam e sugam minha energia e fazer qualquer coisa fora do horário comercial é um sacrifício físico, então agradeço eternamente a eles pelo trabalho de detetive.
Começando a ver pela terceira vez um mesmo vídeo, tento entender a conta e a lógica. Treze é sempre um número chave, mas eu nunca entendo as multiplicações e divisões. Essa habilidade deles é realmente impressionante, parece que eles estão em todo lugar, observando o tempo inteiro e atentos ao menor sinal dela. É muita evidência coletada de uma forma tão organizada. Será que eles não querem trocar de lugar? Eles fazem o meu trabalho e eu o deles?
Paro no meio da rua e encaro a tela por um segundo, imóvel, para que a ideia que eu acabei de ter não me fuja. Como sou burra. Rapidamente, pego um papel e caneta e começo a anotar desenfreadamente.
Será que se eu não mandar o relatório consigo atrasar o arquivamento do caso?